Expresso do Amanhã (2013) - Crítica

 Snowpiercer (O Expresso do Amanhã), é um filme de ação de ficção científica de língua inglesa sul-coreano-checo de 2013 baseado no romance gráfico francês Le Transperceneige de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette. O filme é dirigido por Bong Joon-ho, e escrito por Bong e Kelly Masterson. O filme marca a estreia em língua inglesa de Bong; aproximadamente 80% do filme foi filmado em inglês.

“Expresso do Amanhã” é sua primeira incursão pelo idioma inglês e reúne elementos de suas histórias anteriores para traçar um panorama futurista no qual os humanos, na tentativa de salvar o planeta do aquecimento global, jogam uma substância na atmosfera para “corrigir” o clima. Só que o tiro sai pela culatra e o mundo cai em uma nova era glacial. A humanidade padece e os poucos sobreviventes tornam-se passageiros de um trem que dá a volta no globo ininterruptamente e onde os vagões definem as classes sociais. Nos primeiros estão o criador do projeto e os mais abastados, que vivem em hedonismo. Ao fundo, os mais pobres subexistem e são alimentados por uma proteína feita a partir de... Bom, sem spoilers. Veja para crer.


Em um futuro distópico, um experimento científico é realizado para neutralizar o aquecimento global que, após falhar, provoca uma era glacial que quase termina com a população mundial. Os únicos sobreviventes são os habitantes do Snowpiercer: motor ferroviário extenso com nível ilimitado que circunda todo o planeta através de uma estrada de ferro.

Após o desastre natural, o trem é dividido em duas classes sociais: por um lado, a parte da frente composta da classe privilegiada; por outro lado, a classe trabalhista e os pobres, localizados na cauda, que decidem organizar uma revolução social para tomarem o controle da máquina.

A empresa de Chan-wook, Moho Film, adquiriu os direitos pela obra em 2006, mas daí até o filme começar a ser desenvolvido foi uma longa batalha, de roteiros reescritos em várias versões. Em uma delas, por exemplo, havia se imaginado uma história romântica para o protagonista, interpretado por Chris Evans, que só entrou para o projeto em janeiro de 2012, juntamente com outros do elenco como Tilda Swinton e Jamie Bell. As filmagens aconteceram nos meses seguintes, durante 72 dias, nos estúdios Barrandov Studios, sendo concluídas em 14 de julho para início do processo de pós-produção. Expresso do Amanhã estreou em julho de 2013 na Coreia do Sul, e nos meses seguintes alcançou outros países, com grande parte de suas críticas favoráveis; no Brasil, só chegaria, sem soar o apito do trem, em 27 de julho de 2015.

O filme é todo inspirado na graphic novel francesa Le Transperceneige (publicada no Brasil com o título literal O Perfuraneve), O Expresso do Amanhã é o primeiro filme em língua inglesa do diretor sul-coreano Bong Joon Ho, responsável pelos excelentes Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Mother – A Busca pela Verdade e também uma obra-prima esquecida. Mantendo um clima neo-noir em uma improvável situação pós-apocalíptica enclausurada em um relativamente pequeno ambiente, o diretor mostra seu controle de câmera, sua habilidade para fazer muito com pouco e sua mais absoluta criatividade em uma película imperdível e que já nasce com o status de cult.

A cada avanço pelos vagões, o grupo rebelde descobre como as coisas funcionam no expresso, assim como enfrenta desafios como um exército de guardas com armas brancas, e com óculos de visão noturna, para aproveitar a passagem por um túnel escuro. Participando como um novo passageiro, o espectador fica impressionado com a divisão das funções, o modo como é produzido alimento, preservada a natureza, a neve é derretida e filtrada, e como a parte da frente é mantida sob controle e proteção. A proposta é muito interessante e curiosa, e ainda tem toda a sua carga metafórica de representação de uma sociedade que privilegia os mais ricos.

Apesar de bem-sucedida na Coréia do Sul, a fita sofreu gigantescos atrasos na distribuição nos EUA e outros importantes territórios, cortesia de Harvey Weinstein, que exigiu um corte de 20 minutos na duração e inserção de narrações de abertura e encerramento, algo veementemente rejeitado pelo diretor. Com o impasse e depois de uma petição online idealizada e fomentada por Denise Heard-Bashur, conhecida “ativista cinematográfica”, a distribuição acabou caindo na mão de outra empresa de menor alcance, o que impediu que a película fosse laureada com um grande circuito.

Mas isso não impediu as críticas positivas oriundas de festivais pelo mundo que aplaudiram a originalidade e ousadia do filme. E, sem dúvida alguma, essa receptividade positiva é muito merecida, pois Expresso do Amanhã consegue, de uma só vez, reinventar o sub-gênero do drama pós-apocalíptico e estabelecer um altíssimo parâmetro para filmes de orçamento médio (a fita custou 40 milhões de dólares, troco se comparado com blockbusters do verão americano, algo que o filme de Joon Ho poderia facilmente ter sido).

Uma comparação imediata, justa e clara seria com Mad Max: Estrada da Fúria. George Miller fez um filme pós-apocalíptico que literalmente trafega única e exclusivamente em linha reta. É uma perseguição indo e outra voltando e, no processo, o diretor entregou uma inesquecível experiência cinematográfica. Arriscaria dizer que Expresso do Amanhã, que antecedeu o quarto Mad Max em dois anos, consegue ir ainda além, pois é também um filme pós-apocalíptico “em linha reta”, mas com subtextos e críticas sócio-econômicas bem mais interessantes. Exagero? Então me acompanhe.

Expresso do Amanhã exige, com toda certeza, um alto grau de suspensão da descrença. Temos que aceitar que, em futuro próximo, por erro humano, o mundo todo passa por uma fortíssima Era Glacial e os únicos sobreviventes da raça estão dentro de um trem – o Perfuraneve do título da graphic novel em francês e português e do filme em inglês – que trafega ao redor do mundo pela força de um moto-contínuo quase mágico. Temos que aceitar que o trem é auto-suficiente e praticamente eterno e que, ao longo de seus intermináveis vagões, os últimos sobreviventes de uma apocalipse gelado vivem divididos em classes sociais conforme as classes de um trem ou de um avião. Na frente, os mais abastados vivem em luxo absoluto, com restaurantes, bares, escolas, saunas, boates e tudo de “decadente” que a civilização pode oferecer. Atrás, os mais pobres, com trapos para vestir, camas amontoadas para dormir e cuja comida é, única e exclusivamente, uma nojenta gelatina proteica fabricada em vagões intermediários.

Mas o mais sensacional dessa estrutura é que Bong Joon Ho nos faz aceitá-la sem maiores problemas. É fácil detectar as impossibilidades, mas não ligamos e queremos explorar esse gigantescamente longo trem seguindo a revolução encabeçada relutantemente por Curtis Everett (o próprio Capitão América, Chris Evans) depois que o sequestro de duas crianças de seu grupo pelos habitantes da primeira classe acontece. A linha reta que mencionei é a longa luta de Curtis e companhia, vagão por vagão, com a ajuda de seu mentor Gilliam (o veterano e saudoso John Hurt), de seu amigo Edgar (Jamie Bell, o Tintim), Namgoong Minsu (Song Kang-ho, de quase toda a filmografia do diretor) e sua filha clarividente Yona (Ko Asung, a menina de O Hospedeiro). O objetivo é alcançar a locomotiva, lugar quase mítico onde viveria Wilford (Ed Harris), o criador do trem, originalmente para fins turísticos.

Ainda que se possa dizer que a separação em classes sócio-econômicas conforme as classes de um trem é uma forma óbvia demais para se fazer comentários e críticas às “castas”, o fato é que Expresso do Amanhã pode ser visto e apreciado em pelo menos três camadas. A mais superficial seria a da história pela história, em que o foco seria mesmo na aventura e em como ela se desenrola, com as respectivas atuações, fotografia, montagem e efeitos especiais. Nesses aspectos, o trabalho do direitor e equipe é impecável.   

Capaz de despertar reflexão e discussões pelos temas que aborda, “Expresso do Amanhã” é dinâmico, impressiona e chega a chocar. Seja por seu arroubo visual, pela violência que por vezes pode incomodar parte da plateia ou por identificarmos nele um reflexo da nossa existência. E, quanto ao escrito lá no início, o filme pode ser a porta de entrada sim, não apenas para a obra de Bong Joon-Hoo, mas também do produtor Chan-wook Park, responsável pela célebre trilogia da vingança (“Mr. Vingança”, “Oldboy” e “Lady Vingança”).

Dentro de uma estrutura confinada, o cineasta se esmera na criatividade para colocar nas telonas sequências de ação originais e chocantes, sempre com um viés exagerado, absurdo, quase pantomímico. Essa escolha estilística não é aleatória, pois ela ajuda o espectador a aceitar o inusitado da premissa da fita e retira qualquer expectativa de “realismo” ou lógica física. “Estamos em um outro universo”, é basicamente esse o recado que ele quer passar. A fotografia de Kyung-pyo Hong, parceiro de Joon Ho em Mother – A Busca Pela Verdade, é quase um personagem da obra. Sem inventar, ele usa tons escuros de cinza e marrom para o “proletariado” e “branco e preto” asséptico para as classes “dominantes”, mas de uma forma orgânica, que casa com perfeição com os figurinos de Catherine George e a direção de arte de Stefan Kovacik. O preto “morte e pobreza” da casta inferior dá lugar ao preto “vida e sofisticação” alguns vagões a frente sem que haja choque de lógica ao espectador. Há uma estranha harmonia na extrema sujeira de um lado e na extrema limpeza de outro que é difícil realmente explicar, mas que permeia toda a película.

Essa sujeira x limpeza, de certa forma, também é caracterizada pela escolha de Chris Evans para encabeçar o elenco. A expectativa que temos – um jovem forte e belo – é pervertida com sua caracterização sofrida e que surpreende por mostrar que, à frente de lentes comandadas por diretor que sabe extrair o melhor de seu elenco, Evans realmente sabe atuar. Não é brilhante, mas cumpre sua função com louvor e, acima de tudo, credibilidade. Do outro lado da moeda, temos uma quase irreconhecível Tilda Swinton, como uma espécie de agente que faz a “junção” entre classes sociais e que é responsável pelo sequestro das crianças. Em uma caracterização afetada, carregada de maquiagem e que inevitavelmente (e não sem querer) lembra Margaret Thatcher, ela amplia a sensação de estranheza e de ação cartunesca que Bong procura imprimir em sua revolução férrea.

Mas isso tudo, caros leitores, é apenas a primeira camada. A camada facilmente apreciável e capturável por nossos sentidos. Há uma camada logo abaixo, de crítica sócio-econômica que, como disse, é mais do que óbvia se apenas observarmos a história por seu valor de face. É simples concluir que estamos assistindo à luta do proletariado contra o malvado e doentio capitalismo, mas essa estrutura formulaica é boba demais, simplista demais para parar por aí. Vamos além então, para a terceira camada.

Nela, percebemos que esse trem eternamente contornando um congelado planeta Terra não exige nada de ninguém. Não há trabalho, não há criação de riquezas. O proletariado dos vagões “pobres” não é realmente proletariado, pois não são trabalhadores. São apenas pessoas que vivem lá. O mesmo vale para os ricos da outra ponta. Eles não são apostadores em bolsas de valores. Apenas são ricos, pois estão nos vagões certos. Não existe, aqui, aquilo que vemos, por exemplo, no magistral e seminal Metrópolis, de Fritz Lang, filme aliás referenciado aqui e ali em Expresso do Amanhã.

A luta de classes, assim, é transferida das ruas para o espaço diminuto do veículo que trafega nos trilhos congelados. De ambiente em ambiente conquistado, os maltrapilhos que brigam por um pouco de dignidade tomam contato com realidades bastante distantes das suas. Bong Joon-Ho ressalta a cada segmento de seu filme a violência dos abismos sociais, a categorização das pessoas, seja por posses ou local de nascimento. Não o faz sem tornar também gráfica essa violência, com sangue colorindo as janelas esbranquiçadas da locomotiva, ao passo que miseráveis, empregados e ricos tombam numa luta movida pela aspiração a direitos básicos, estes negados em virtude da manutenção do conforto de uns poucos. Expresso do Amanhã é um filme político, não no sentido das contendas partidárias, mas por comentar alegórica e criticamente realidades próximas a nós, tão próximas que, às vezes, fica difícil dimensiona-las.

Assim, o confronto da riqueza versus pobreza existe como um fim nele mesmo e não por ditames econômicos. Sim, existe uma função perniciosa no sequestro que catalisa a ação da fita, mas essa questão fica em segundo plano e não justifica exatamente a divisão em classes. Ela parece existir por uma razão ainda mais cruel, ainda mais inaceitável que uma mera alegoria anti-capitalista ou anti-comunista: por puro comodismo. Sim, comodismo. E de ambos os lados. A sociedade pré-trem era dividida em castas e a sociedade no trem, portanto, precisa ser dividida em castas. E o comodismo que é varrido para o lado quando a revolução começa, mas o espectador verá, na medida em que o filme se desenrola, que nem isso é tão simples assim e o final, com um corajoso discurso por parte de Curtis, dá o que pensar e discutir. É isso que grandes filmes devem sempre fazer e é isso que Expresso do Amanhã consegue com facilidade, mesmo depois de encantar os espectadores com a argúcia técnica de Bong Joon Ho e de sua equipe.

O final aponta à nova era, em contraponto à nossa atual sociedade etnocêntrica, prioritariamente branca e cristã. A despeito das já divulgadas disputas criativas/comerciais entre o diretor e os produtores que impuseram cortes significativos e inserções arbitrárias para o lançamento internacional, Expresso do Amanhã é o que toda ficção científica deveria ser: uma parábola contundente sobre nosso próprio tempo. Expresso do Amanhã é um filme que provavelmente será lembrado muitos anos no futuro. E merecidamente. Pode ter sofrido na bilheteria por mandos e desmandos de um produtor que acha que sempre sabe o que é melhor para seu público, mas o resultado final é tão magnífico e de cair o queixo que fica difícil imaginar como essa obra de Bong Joon Ho não ganhou naturalmente mais destaque e aclamação mundial. Como resultado pelo ótimo material original, a trama se transformou em uma série, já em sua terceira temporada, desenvolvida por Josh Friedman e Graeme Manson, e que conta com a atriz Jennifer Connelly no elenco. Está disponível na Netflix, para aqueles que querem continuar a viagem. De toda forma, prestigiem também esse filmaço de 2013!

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