Mulher-Gato #74: Um Arco Ambicioso Que Esbarra em Sua Própria Complexidade
Desde que Torunn Grønbekk assumiu a roteirização da série em Mulher-Gato #69, ficou claro que a escritora estava disposta a expandir o escopo das aventuras de Selena Kyle para algo mais ousado, internacional e carregado de conspiração. Em Mulher-Gato #74, essa proposta continua – e até se intensifica – com a heroína mergulhando ainda mais fundo em sua caçada por justiça, agora em solo japonês.
A premissa é promissora: alguém está eliminando os antigos membros da equipe criminosa de Selena, e ela, como é de se esperar, não está disposta a deixar isso passar impune. Depois de investigar a família criminosa Belov na Europa, Selena agora segue pistas até o Japão, tentando descobrir quem é o verdadeiro responsável pelos assassinatos. Tudo isso deveria render uma história envolvente de vingança e redenção. Infelizmente, o resultado final é frustrante – especialmente para quem espera uma trama com peso emocional e clareza narrativa.
Um Enredo Ambicioso, Mas Excessivamente Confuso
É preciso reconhecer o esforço de Grønbekk em construir um épico policial que cruza fronteiras, misturando espionagem, confrontos com mafiosos e investigações intrincadas. Essa ambição é admirável, mas tropeça em sua execução.
O grande problema está na complexidade mal gerida do enredo. Em vez de manter o foco na motivação central – a busca de Selena pelo assassino de seus antigos parceiros – a narrativa se dispersa em planos excessivamente complicados, personagens secundários indistintos e ações que mais confundem do que revelam. Um exemplo claro disso é o momento em que Selena tenta explodir um data center com o objetivo de atrair outro personagem para um local específico usando uma chave (ou seriam duas?). O plano, que deveria ser um momento de tensão, soa como um labirinto sem saída.
A Falta de Conexão Emocional
O ponto mais grave de Mulher-Gato #74 não está nem na complexidade da trama, mas na ausência de envolvimento emocional de Selena com os acontecimentos. Logo nas primeiras páginas, testemunhamos a morte de mais um membro de sua antiga equipe, mas Selena parece estranhamente indiferente. Não há dor, não há raiva genuína – apenas uma apatia que distorce completamente o impacto dramático da narrativa.
Essa abordagem até poderia ser interessante se a intenção fosse mostrar uma Selena emocionalmente retraída, tentando esconder sua dor. Mas não é o que ocorre aqui. A impressão que fica é que a personagem está apenas “cumprindo tabela”, movida mais pela obrigação do roteiro do que por uma motivação autêntica. O leitor não entende o que isso realmente significa para ela, em um nível profundo, e por isso é difícil se importar.
Personagens Secundários Descartáveis
Outro fator que mina a leitura é a construção dos personagens coadjuvantes. Os membros da família Belov, por exemplo, são quase intercambiáveis. Seus nomes são tão parecidos – Alexandar, Anton, Adam – que beiram a caricatura. Mais grave ainda, as interações de Selena com eles seguem sempre o mesmo padrão: são homens maus, ela precisa confrontá-los, fim. Não há nuance, não há evolução, não há qualquer variação no relacionamento dela com esses antagonistas.
Arte Salva o Que Pode Ser Salvo
Se há algo que realmente se destaca na edição, é a arte. Marianna Ignazzi entrega um trabalho visualmente limpo, expressivo e elegante, mesmo que, em alguns momentos, falte densidade nos detalhes. Ainda assim, é graças a ela – e às belíssimas cores escuras e suaves de Patricio Depeche – que conseguimos navegar visualmente pela história, mesmo quando a narrativa falha em nos guiar de forma eficaz.
A clareza visual é um alívio bem-vindo em meio ao caos estrutural do roteiro. Ignazzi consegue dar ritmo às cenas de ação e expressividade aos quadros, o que torna a leitura, no mínimo, visualmente agradável – um mérito importante quando a história em si derrapa tanto.
Um Capítulo Desconectado de Sua Própria Protagonista
No fim das contas, Mulher-Gato #74 é um exemplo clássico de uma HQ que possui todos os elementos para ser grande, mas falha justamente naquilo que deveria ser sua força: a conexão emocional entre protagonista e leitor. Quando a heroína parece alheia à dor que deveria sentir, o público também se desliga.
Mesmo que o arco ainda possa reservar surpresas, é difícil imaginar um desfecho satisfatório a essa altura, já que a base emocional da história nunca foi construída com solidez. O leitor precisa sentir o peso das perdas, a urgência da missão, o conflito interno – e nada disso está presente de forma convincente.
Mulher-Gato #74 tenta ser uma HQ ambiciosa, que mistura noir, espionagem e ação internacional, mas tropeça em uma trama excessivamente convoluta, personagens genéricos e, o mais grave, uma protagonista que parece não se importar com sua própria jornada. A arte salva a edição de ser completamente esquecível, mas não consegue esconder o vazio emocional no coração da narrativa.
Para os fãs mais dedicados da Mulher-Gato, talvez ainda haja algo a aproveitar aqui. Para os demais, essa edição é mais uma frustração do que um deleite – uma promessa de grandeza que se perde nas sombras que tanto tenta evocar.