We Called Them Giants é uma obra marcante que surge da colaboração entre o escritor Kieron Gillen e a artista Stéphanie Hans, conhecida pelo seu trabalho em DIE, um quadrinho que mistura o universo dos jogos de RPG com elementos de fantasia sombria. Esta nova graphic novella, que será publicada pela Image Comics, apresenta uma visão única do gênero pós-apocalíptico e dos contos de fadas, criando uma obra que transita entre a fantasia e a ficção científica, ao mesmo tempo em que explora a condição humana diante do desconhecido e do trauma.
O enredo se desenrola em um cenário pós-apocalíptico, onde a protagonista Lori, uma jovem que cresceu em lares adotivos, acorda um dia e descobre que é uma das poucas pessoas restantes após um evento apocalíptico, reminiscente de um "rapto" bíblico. Como aprendido ao longo de sua infância, Lori acredita firmemente que “todos vão embora” – uma lição de abandono que se torna ainda mais dolorosa no novo mundo que ela tem que enfrentar sozinha. Contudo, Lori não está completamente sozinha: ela encontra dois outros sobreviventes, Annette, uma jovem ingênua, e Beatrice, uma idosa cínica, com quem forma um trio improvável de amizade e resistência. Juntos, enfrentam uma série de ameaças que incluem gangues, seres misteriosos chamados "Cães" (que usam máscaras de pássaros carronhos) e os temíveis "Gigantes", criaturas enigmáticas que habitam as florestas ao redor.
A Dinâmica Entre o Fantástico e o Real
O quadrinho mistura referências ao gênero pós-apocalíptico com uma estrutura de conto de fadas. Embora a história apresente elementos típicos de uma narrativa distópica (a devastação da civilização, a luta pela sobrevivência e as gangues de sobreviventes), ela também incorpora figuras míticas e mágicas, como os Gigantes, que são muito mais que simples criaturas fantásticas. Ao contrário dos gigantes tradicionais, frequentemente representados como ameaças ou heróis de contos infantis, esses Gigantes possuem uma natureza alienígena, com designs que evocam elementos naturais, como penas e geodos. A arte de Stéphanie Hans emprega cores vívidas, como o vermelho rubi e o verde esmeralda, criando uma sensação de que esses gigantes são não apenas estranhos e monstruosos, mas também uma força extraterrestre e desorientadora que perturba o cenário sombrio e cinza do mundo ao redor.
As composições de Hans são fundamentais para transmitir o horror existencial que acompanha a convivência com esses seres titânicos. Frequentemente, suas páginas são constritas, criando uma sensação de claustrofobia que reflete a distorção da realidade causada pelo tamanho e pela presença dessas entidades. Quando o espaço visual se expande, seja para mostrar os gigantes ou os cenários devastados, o suspense é palpável, capturando a tensão entre a reverência e o medo que essas criaturas causam.
Uma Nova Fábula para o Mundo Contemporâneo
Porém, apesar de ser centrado em criaturas de tamanho colossal e no mistério das forças cósmicas que alteraram o mundo, We Called Them Giants é, na essência, uma fábula. As figuras arquetípicas de Lori, Annette e Beatrice ecoam o papel das heroínas em contos clássicos, onde o confronto com o desconhecido – seja ele os Gigantes, os Cães ou o próprio apocalipse – leva a uma jornada de autoconhecimento e amadurecimento. Em sua busca para entender o que aconteceu com o mundo e com as pessoas que partem, Lori se depara com desafios que vão muito além da luta pela sobrevivência física.
A narrativa de Kieron Gillen também brinca com a ideia do conto de fadas moderno. Logo no início, ele faz referência à história de Jack e o Pé de Feijão, ao mencionar que, enquanto o "rapto" consumiu muitos recursos, ele poupou os feijões. Essa alusão brinca com a ideia de um mundo fantástico que se mistura com um universo distópico e atual, onde o impossível se torna possível e os antigos mitos são repaginados para os tempos modernos. A interação de Lori com Annette e Beatrice sublinha os dois extremos da experiência humana: a ingenuidade da juventude e o ceticismo da velhice. Juntas, essas figuras formam um triângulo que reflete a jornada psicológica e emocional de Lori – o que a faz crescer como pessoa ao confrontar a dor da perda, da solidão e da incerteza.
Nomes, Identidade e a Busca por Significado
Uma das escolhas mais interessantes de We Called Them Giants é a decisão de dar nomes aos personagens. Isso pode parecer trivial à primeira vista, mas é uma escolha importante quando se trata de um quadrinho que flerta tanto com o gênero pós-apocalíptico quanto com o conto de fadas. No contexto de obras como The Road de Cormac McCarthy, onde os personagens são frequentemente sem nome, a escolha de atribuir uma identidade aos personagens dá um peso maior à experiência de cada um. Lori, Annette e Beatrice não são apenas arquetípicas – são pessoas reais, com seus próprios passados e histórias, que lidam com o impacto emocional de um mundo despedaçado.
Beatrice, em particular, é um exemplo de como o quadrinho joga com simbolismos mais profundos. Seu nome é uma referência direta a Beatrice Portinari, a figura que guia Dante pela Divina Comédia, sugerindo uma dimensão espiritual e redentora para sua figura. Mesmo em sua visão cínica e pragmática da vida, Beatrice representa uma forma de guia para Lori, ajudando-a a lidar com a dura realidade do novo mundo. A maneira como o quadrinho humaniza esses personagens, em vez de torná-los meras ferramentas narrativas, amplia a complexidade da história.
A Estética e o Mundo Não Explicado
A arte de Stéphanie Hans é mais do que apenas uma ilustração – ela é uma parte integral da narrativa. Com seu estilo pintado e detalhado, Hans cria um mundo que é ao mesmo tempo hipnotizante e perturbador. As cores saturadas, os contrastes e a manipulação da luz fazem com que o leitor sinta o peso da destruição e da transcendência, ao mesmo tempo em que ilustra a estranheza dos seres que habitam esse novo mundo.
No entanto, um dos aspectos mais interessantes e desafiadores de We Called Them Giants é o fato de que muitos dos mistérios centrais nunca são explicados. O que causou o "rapto"? Quem são os gigantes? Por que as criaturas são tão diferentes do que esperamos de um mundo pós-apocalíptico? Essas lacunas não são simplesmente falhas de construção narrativa, mas sim escolhas deliberadas para refletir o tema central do quadrinho: a aceitação da incerteza e do desconhecido. Isso ressoa profundamente no contexto atual, onde as respostas definitivas muitas vezes nos escapam e onde a busca pelo significado é mais importante do que qualquer resolução concreta.
We Called Them Giants é uma graphic novella que desafia e encanta ao mesmo tempo. Kieron Gillen e Stéphanie Hans não apenas exploram o gênero pós-apocalíptico e o conto de fadas, mas também recriam essas narrativas para refletir as preocupações e ambiguidades do nosso tempo. A história de Lori e seus companheiros é, ao mesmo tempo, um conto de amadurecimento e uma meditação sobre a necessidade de convivermos com o desconhecido. A arte de Hans e a escrita de Gillen se unem para criar uma obra que não oferece todas as respostas, mas que, paradoxalmente, nos ensina algo sobre o valor da busca e do enfrentamento daquilo que não podemos controlar.
Este é um quadrinho que, ao mesmo tempo, nos faz questionar e nos convida a sonhar.