Alien: Romulus se esmera no niilismo e devolve a franquia ao horror

 Normalizamos o uso de IA/machine learning no nosso dia a dia, lidamos com suas interfaces com naturalidade, mas não deixa de ser digno de assombro que Alien: Romulus acesse o espólio de um ator falecido para lhe dar, via computação gráfica, um papel importante (e literalmente ressuscitado) nesta trama ambientada entre Alien (1979) e Aliens: O Resgate (1986). A nossa relação de flerte com a tecnologia sempre esteve entre os temas desta franquia sobre os horrores do ciberfuturismo, mas Romulus faz disso toda uma declaração de princípios.



A adesão às novas maravilhas da tecnologia, longe de ser uma operação irrefletida, transpira conscientemente na história que Fede Alvarez e Rodo Sayagues escolhem contar. Mais continuação do que reboot, e numa linha de pensamento que conecta Isaac Asimov a Michael CrichtonRomulus acompanha um grupo de jovens que usam um androide defasado da Weyland-Yutani para invadir uma estação espacial. De lá eles planejam roubar leitos de criogenia que podem levá-los a um sistema solar longínquo o suficiente do planeta de mineração onde eles trabalham em regime de semi-escravidão.  

Como é usual no atual cinema americano com pretensões de blockbuster “de assinatura”, Romulus torna literal tudo o que foi antes meio subtexto, e o que era transversal em Alien está, mais do que nunca, convertido em tema. Isso significa que as relações de exploração e os conflitos de preconceito respondem pela “seriedade” da trama de Alien: Romulus - o que, de qualquer forma, não é de estranhar dada a tradição de consciência social que corre no sangue latino-americano dos roteiristas. Fazer do androide Andy o único homem negro no elenco, interpretado pelo inglês David Jonsson, nos alerta para essa carga textual desde o primeiro momento.

Que Fede Alvarez tenha prosperado nos filmes estilizados de horror, como o reboot de Evil Dead, por outro lado, e escolha fazer este Romulus com um elenco jovem, aproxima mais o longa do formato dos filmes-de-maníaco cuja estrutura descomplicada, direta e linear Alien emula desde 1979. Talvez Ridley Scott tenha aderido ao slasher organicamente, sem maiores preocupações com o julgamento que isso implicava na época, mas o fato é que hoje Alien: Romulus se filia ao subgênero com a maior propriedade, ciente da popularidade do slasher - e, acima de tudo, consciente de que uma narrativa consumada de sadismo é tudo o que um filme de Alien pode almejar numa era de flagelo e niilismo.        

O diferencial aqui é como Romulus embala tudo isso numa parábola ciberfuturista que de fato parece nova e particular, e cuja expressão não está apenas no texto mas também nas imagens que elege e associa. Para além de revisitar com reverência e esmero a iconografia de Alien (o falismo do Facehugger e do xenomorfo, a “gravidez” do Chestbuster; tudo em Alien e na sua dimensão psicossexual sempre começará e terminará referenciando H.R. Giger), Alvarez dá um passo além quando antepõe o orgânico e o sintético num discurso muito bem articulado sobre o que separa o humano e o maquinal.

De um lado, temos o orgânico não como emblema de vida, mas de caos: a gravidez não planejada de Kay (Isabela Merced), fadada no filme a se tornar dor de cabeça para os personagens; os fluidos ácidos do xenomorfo, promovidos a dispositivo central do roteiro; o plasma e a bioengenharia monstruosa do laboratório. Do outro lado, o sintético tem na sua assepsia o signo da perfeição: o disco dourado brilhante que atualiza a programação do androide e faz de Andy um übermensch entre os miseráveis. Se os prelúdios com Michael Fassbender esboçaram uma reflexão a respeito disso nos sofisticados termos da filosofia, cabe a Fede Alvarez, e não a Ridley Scott, formulá-la de maneira mais efetiva nos códigos do cinema de horror - onde desconfia-se da assepsia e sabe-se que fluidos na tela, de qualquer natureza, são resultado de violência e desordem.

Não falta filosofia em Alien: Romulus, mas ela se expressa na conduta dos personagem e nos seus conflitos antes de ser escrita em monólogo. A dinâmica central antepõe Andy e a humana que trata o androide como um irmão adotivo, Rain (Cailee Spaeny). Todo o niilismo do filme converge para a solução dessa dinâmica, que por trás do teatro da empatia esconde ressentimentos gestados na era pós-industrial. Mais especificamente, quando diz a Andy que “vai consertá-lo”, Rain pensa como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): sonha manter o androide num estado primitivo não como uma agressão mas como compaixão, pois os homens eram mais felizes antes do advento da posse e do dinheiro condená-los à desigualdade e à exploração. 

Alvarez nega Rousseau e, no melhor estilo Sapiens, entende a tecnologia e o progresso como nosso predestino, ainda que o faça com a melancolia típica de uma narrativa cyberpunk. Quando abraça a máquina para dar forma e fruição a esse debate, Alien: Romulus parece inclinado a torcer para um lado. Usar a computação gráfica, um banco de dados de semblantes e a assinatura de familiares para manter as pessoas trabalhando em moto-perpétuo não poderia ser mais representativo dessa crença. Como um competente exercício de sadismo e desesperança, Alien: Romulus sabe bem dissimular o catastrofismo como final feliz.

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